Histórias de Garimpo: Garimpando Ouro por aí...
Prólogo
No garimpo, principalmente no aluvião, não existe praticamente lazer. O que se faz é em função do trabalho. Trabalha-se sete dias por semana, vinte e quatro horas por dia, sem pausas para finais de semana ou feriados.
As pausas e a inactividade quando ocorrem, são motivadas por algum tipo de avaria no equipamento, cuja complexidade na reparação exija peças vindas da cidade ou a presença de algum técnico que tenha que ser chamado. Tão logo o problema é solucionado, recomeça a actividade, independentemente do dia e hora.
A própria caça e pesca, que não deixam de ser actividades de lazer, praticam-se mais por uma questão de necessidade de prover alimentos frescos, do que como prática desportiva.
Fora as currutelas – conjunto de flutuantes com comércio, botequins e o inevitável puteiro – nem por todos os garimpeiros frequentados, o lazer resume-se aos “causos” que, se verídicos alguns, são no mínimo exagerados, tanto na tristeza e na desgraça que descrevem, como na alegria entre sonoras e soltas gargalhadas.
Vou contar aqui algumas dessas histórias, as que a minha memória arquivou, e sobre esse povo composto de garimpeiros, bandeirinhas, mecânicos, prestadores de serviços diversos, comerciantes, vendedoras, cozinheiras e putas, quase sempre novinhas, moderninhas na idade.
Uma boa parte das histórias são divertidas, mas “causos” ocorridos numa corrida de ouro, em tudo similar a todas as outras ao longo na história, nos mais diversos lugares do mundo, com uma concentração fantástica de aventureiros e em lugares inacessíveis à lei comum, não sujeitos às sanções normais da civilização, há também um bocado de histórias bárbaras, trágicas e dramáticas.
A Lei do Garimpo é consuetudinária, e que ninguém alegue desconhecimento. Como dizer que não sabia, uma coisa que todos sabem? Há tabus - roubo, mexer com mulher errada, perfídia! Não há presídios nem guardas, então a pena é sempre uma só, a morte e o corpo jogado no rio. Não há muita consideração pela vida humana nos garimpos.
Não tive qualquer tipo de preocupação com alguma ordenação cronológica ou de temas, qualquer que fosse. Limitei-me a ir escrevendo à medida que me ocorriam à memória os assuntos, numa sucessão que, embora desordenada, foi também muito gostosa, por me trazer à lembrança as circunstâncias em que ocorreram ou me foram contadas.
E dificilmente as semelhanças serão meras coincidências.
CD
CAGAR NA ESTRADA
Esta história também me foi contada pelo Raimundo “Pai Velho” na mesma viagem.
Passou-se no tempo em que ônibus e carros que se aventurassem à estrada para Abunã, tinham hora para partir mas nunca para chegar. A estrada esburacada e com atoleiros quilométricos, transformava cada viagem numa odisséia.
Passou-se numa noite escura, fechada e de forte chuva.
O peão vinha no ónibus, torcendo-se de dor de barriga, mas quieto, em silêncio, pois os olhares hostis dos outros passageiros a cada gemido, o desencorajavam.
Na parada anterior, num boteco da estrada, tinha sido o único a encarar uns pastéis Lavoisier, que o dono do bar, após sacudir as moscas, apresentava como sendo do dia.
Bom, perto do Mutum a situação era insustentável. O peão pediu ao motorista para parar o ónibus e os restantes passageiros, achando que ele estava na eminência de se aliviar ali mesmo, não se opuseram.
O peão saiu e foi para a parte traseira da viatura, lugar mais a coberto de olhares inibidores.
De repente, ouviu-se um rugido, gritos e depois um silêncio sepulcral.
Os passageiros deixaram passar algum tempo e, como nada mais acontecesse nem o cagão voltasse, alguns mais afoitos resolveram ir investigar.
Lá atrás, já um pouquinho dissipadas pela chuva, viam-se pegadas de onça....e um rastro de merda que ia do chão até ao teto do ónibus, onde o garimpeiro se mantinha de olhos esbugalhados, apavorado.
Em plena função, surpreendido por uma onça, subiu correndo pela escada do bagageiro, sem parar de cagar!
CAVALO DE PAU
A técnica é simples e a manobra é a causadora da maioria dos acidentes com voadeiras.
O piloto da voadeira acelera à máxima potência e depois puxa o timão de repente, provocando na voadeira um giro de 180 graus, mostrando assim aos outros peões e principalmente às cozinheiras e meninas do brega, a sua perícia, a sua capacidade de domínio sobre a máquina.
Não raro cai e não raro, também, a voadeira fica rodando sem piloto, passando-lhe por cima, com consequências as mais diversas. Mas não é sempre que o desfecho é trágico. A outra alternativa é sempre hilariante para quem assiste.
Na draga do Chow, no Porto da Balsa em 88, havia uma cozinheira cujo maior prazer na vida era andar de voadeira. Fosse a que horas fosse do dia e estivesse ela fazendo o que estivesse, bastava ver um dos peões da draga desamarrar a voadeira que ela se despencava da cozinha e, num ápice, estava sentada à proa da embarcação, ostentando um ar feliz.
Um dia, eu estava conversando com o Rubens, paraense e meu gerente da draga na época, quando vimos um operador do Chow, que tinha a draga poitada perto da minha, preparar-se para sair na voadeira e, atrás dele, toda serelepe, lá vinha a cozinheira.
O peão, de maldade, saiu a toda a aceleração e fez o cavalo de pau... só que caiu ao rio.
A voadeira, sem piloto e com a dona Maria sentada à proa apavorada, ficou rodando em círculo e cada vez que passava perto do peão, ele gritava para a dona Maria arrancar o chicote do motor – mangueira de alimentação de combustível.
A dona Maria, a princípio nem se mexia, mas umas quantas voltas dadas sem novidades, começou a ganhar confiança e foi-se arrastando devagar para a popa, para o motor. Quando lá chegou, tentando adivinhar que diabos seria o chicote do motor, acho por bem apoiar-se no timão com todo o peso, levando-o para o lado contrário... e desta vez dando novo cavalo de pau que a jogou na água.
Nesta altura dos acontecimentos, em todas as dragas em volta, havia uma plateia atenta e eufórica com o inesperado espectáculo, que só terminou quando dois outros peões corajosos e habilidosos, foram com uma outra voadeira resgatar a que estava desgovernada.
O BAMBURRO (1)
Dois dos garimpeiros mais bem sucedidos no Rio Madeira, têm uma história singular e interessante. Sou amigo dos dois.
São dois sócios que se complementam na perfeição e cujo trabalho conjunto tem resultados muito bons.
Um, o Silvino, nissei baixo e forte, com uma boa formação técnica e uma inteligência perspicaz, que o leva a investir sempre em equipamentos de última geração. O outro, o Rogério, português, o “português dos Periquitos” como passou a ser conhecido, vindo de pobre família de pescadores, franzino mas rijo, longas barbas, fez um curso de mergulho e escafandro em Portugal, com o objectivo de emigrar para a Venezuela e trabalhar nas plataformas dos poços de petróleo. De passagem para a Venezuela, em Manaus ouviu falar dos garimpos de mergulho no Rio Madeira... voltou para trás e aqui ficou. Dele se diz que tem faro para o ouro!
O destino levou-os a encontrarem-se no Rio Madeira, nos Periquitos, no tempo em que ainda não havia dragas, e começaram os dois como mergulhadores, em parceria, quando um mergulha, o outro fica atento ao compressor de ar.
Assim nasceu entre eles uma sólida amizade e um interesse em comum, que os levou a serem sócios na compra de uma balsa. Fizeram ouro, juntaram, e quando apareceram as primeiras dragas, as chamadas “queixo duro”, em que a lança era movimentada manualmente com uma catraca, compraram uma.
E foi a queda, a derrocada, a draga não fazia ouro de início e as economias do tempo da balsa, fortemente diminuídas pela compra da draga, em pouco tempo se desgastaram por completo.
Num dia vinte e quatro de Dezembro, completamente blefados e no auge do desânimo, resolveram vender a draga.
O Silvino e os peões foram para Porto Velho e o Rogério, que não tinha família com quem passar a noite de Natal, ficou sozinho na draga, guardando o equipamento.
Na noite de vinte e quatro para vinte e cinco, triste e encostado no barranco, constatando que ainda tinha um resto de óleo diesel no tanque, mas sem dinheiro nem gasolina na voadeira para levar a draga para o meio do rio e poitar, optou por gastar aquele óleo diesel ali mesmo. Colocou o motor para funcionar e mandou brasa !
O combustível era pouco e deu para poucas horas de trabalho, ao fim das quais, apurado o dragado, deu mais de meio quilo de ouro.
O Rogério mandou um peão conhecido a Porto Velho, avisar o Silvino para não vender a draga e começou aí o bamburro deles.
Nesse barranco, trabalhando os dois sozinhos e por turnos, fizeram vários quilos de ouro, e o Rogério tornou-se conhecido como o português dos Periquitos.
Nunca mais voltaram a passar por uma situação difícil. Daí em diante, sempre actualizando equipamentos, são seguramente os garimpeiros que mais ouro produzem no Rio Madeira.